No estado democrático de direito, os cidadãos têm seus direitos assegurados, as leis são respeitadas e a Constituição Federal, cumprida. Quando as instituições legais que devem garantir esses direitos falham, colocam em risco toda a sociedade. Está na lei: todo mundo tem direito à ampla defesa e ao contraditório. Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) entrou em ação para garantir que os réus tenham assegurado o direito de se defender das acusações feitas pelos delatores e determinou que o delator tem que apresentar suas alegações finais antes para que os delatados possam se defender, em suas apresentações finais.
Não há nisso qualquer inovação. Não se trata de uma mudança drástica, está garantido pela lei, está na nossa Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Em uma democracia, a lei deve ser cumprida por todos.
Os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) alegaram, em seus votos, que não houve prejuízo apontado pela defesa de Lula, uma vez que, em sua decisão, a juíza Gabriela Hardt não faz referência sobre as alegações finais do delator. E isso soa absurdo, uma vez que, mesmo que a magistrada não cite as alegações finais em sua sentença, é claro que leu tudo o que disse o delator, mas não pode ler a defesa do réu, uma vez que foi negada aos advogados de Lula a chance de se pronunciar sobre o depoimento do delator.
Houve sim um desrespeito ao artigo 564 Inciso IV do Código de Processo Penal (CPP), que diz que haverá nulidade quando houver omissão de ato essencial. Essa omissão, no caso, foi o artigo 402 do CPP. Se o réu tem a ampla defesa prejudicada, isso vicia todo entendimento do juíz. Quando o juiz lê as alegações finais da acusação e do delator, fica contaminado sim, uma vez que não teve acesso à defesa do réu.
E foi exatamente isso que aconteceu neste caso. A contaminação das palavras escritas pelo delator pode sim embasar a condenação do réu, principalmente quando ele não tem a oportunidade de apresentar sua defesa.
Ao descumprir uma determinação do STF e entender que a lei não se aplica ao caso específico do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o TRF4 instala não só uma insegurança jurídica, mas também um estado de exceção. E isso é ruim não só para Lula e para os outros réus da Lava Jato, mas para toda a sociedade.
Sem a garantia de que a Justiça seguirá a lei, todos estamos sujeitos a desmandos e a abusos de autoridade. Os tribunais deste país, e de todos os países democráticos, existem para julgar fatos, não pessoas.
Não foi isso que vimos no caso específico do sítio de Atibaia. Durante todo o andamento do processo, percebemos a parcialidade do juízo na condução do processo. Além do escandaloso ‘copia e cola’ da decisão de Moro sobre o triplex do Guarujá, declarações públicas da juíza Gabriela Hardt e a forma desrespeitosa com que tratou o réu deixaram claro que não estávamos diante de um juízo imparcial. “Se começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”, disse a juíza, demonstrando que tornou pessoal a relação com o réu.
Essa mesma parcialidade ficou evidente no voto do desembargador LeandroPaulsen, que citou uma música para ‘argumentar seu voto’, falando em primeira pessoa. Um magistrado não tem que julgar com base na sua convicção pessoal, mas com a sua convicção sobre os fatos.
A decisão do TRF4 vai na contramão do nosso conjunto de leis e arranha a nossa já tão frágil democracia.
Jacqueline Valles é jurista, advogada, mestre em Direito Penal, especializada em Processo Penal e Criminologia, professora universitária e sócia-diretora da Valles e Valles.