Aos 55 anos, depois de cumprir os prazos legais, o policial penal Jill Moraes deu entrada na papelada para se aposentar. O processo, que normalmente dura entre dois e três meses, levou sete para ser concluído e, mesmo assim, só depois de muita briga. “Para mim nunca foi fácil ser policial penal. Tive que enfrentar preconceito e perseguições durante muito tempo, mas nunca permiti que tomassem o controle da minha vida. Quando pedi aposentadoria, imaginei que seria um alívio para mim e para todos, mas fui surpreendido com a discriminação até na hora de sair do serviço público”, relembra.
A tramitação da aposentadoria ocorreu simultaneamente à retificação do nome e do gênero de Jill em seus documentos. Isso virou motivo para a São Paulo Previdência (SPPREV) barrar o pedido, em 2019. “Eu até tentei fazer a alteração de nome e gênero dois anos antes, mas o pedido estava parado na Justiça, sem nenhuma resposta. A mudança só ocorreu, de fato, quando eu já tinha concluído todas as minhas obrigações com o serviço público e conquistado o direito de me aposentar”, conta.
Os novos documentos foram protocolados na SPPrev para cumprir meras formalidades e mesmo sem nenhuma relação com o tempo de trabalho já cumprido, a resposta foi decepcionante: o parecer alegou “dúvida jurídica relevante” e negou a aposentadoria.
Sem advogado
Jill recorreu administrativamente e buscou também indenização na Justiça, mas, de novo, encontrou barreiras. O caso não animou nenhum advogado porque era inédito no Brasil. “Todos recusaram acreditando que era causa perdida, porque não havia jurisprudência. Só há uma maneira de convencer a Justiça em um caso sem precedentes? Criando o precedente. Agora eu sou essa jurisprudência e espero que daqui para a frente esse caso ajude outras pessoas na mesma situação”, afirma o policial penal aposentado.
Reconhecimento de direitos
O advogado Sérgio Moura, do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional de São Paulo (SIFUSPESP), foi o único que topou o desafio. Enquanto os recursos aguardavam resposta, a notícia se espalhou. Jill deu várias entrevistas para a imprensa contando seu caso e, logo depois, os papéis da aposentadoria saíram da gaveta e voltaram a tramitar.
O parecer da Procuradoria Geral do Estado foi taxativo ao afirmar que “o enquadramento de acordo com o gênero sempre pareceu a mais simples tarefa” aos gestores da Previdência. Apesar disso, diz o documento, “tamanha simplicidade gerou graves constrangimentos aos servidores públicos que, ostentando um gênero em seus documentos de identificação, viviam a inquestionável experiência de pertencer ao outro”. O parecer da PGE entendeu que Jill tinha cumprido todos os requisitos para se aposentar.
1º de abril
A aposentadoria finalmente foi concedida, mas não sem uma ironia final: a publicação no Diário Oficial ocorreu no dia 1º de abril de 2020. “Já me perguntaram se me incomoda o fato de ter sido publicada no Dia da Mentira. Eu sempre digo que isso é muito pequeno para incomodar. Me deram o que eu pedi, contra a vontade deles, porque a lei está do meu lado. Quando você faz tudo certo não há motivo para ter medo. O próprio sistema, que faz tudo para prejudicar as pessoas que não se enquadram na heteronormalidade, também se submete às regras da lei. Quando você faz as coisas direito, dentro da lei, a vitória pode demorar, mas vem. Meu primeiro holerite como policial penal aposentado já chegou com meu nome correto. Era exatamente isso que eu queria. Por que me importaria com alguma outra coisa?”, completa.
Quem é Jill Moraes?
Um personagem de história fascinante. Na juventude foi corredor de alta performance e hippie. Ele vivia em uma comunidade alternativa antes de prestar concurso público, aos 24 anos e se tornar Agente de Segurança Prisional. Jill trabalhou em várias unidades do Estado, masculinas e femininas. Ele conta que, antes da transição de gênero, já tinha aparência e papel de gênero masculino, embora fosse, oficialmente, mulher. Relata ter sofrido inúmeras perseguições no sistema. Enfrentou 11 transferências em 29 anos de trabalho. Uma vez, chegou a ser transferido de unidade duas vezes no mesmo dia. Enfrentou diversas sindicâncias e foi inocentado em todas.
Jill atribui as denúncias infundadas à transfobia dentro do serviço público. Conta ainda que servidores gays são desviados de função dentro do sistema prisional porque diretores têm medo de envolvimento com a população carcerária.
Conta ainda que leu seu primeiro livro com os sequestradores do empresário Abílio Diniz, quando fazia a escolta do grupo entre as celas e o setor de biblioteca do Carandiru. Diz que depois de ler A República de Platão nunca mais abandonou a literatura. Se tornou guru de meditação e acredita que os anos de serviço público dentro da cadeia foram a “solução kármica para proteger seu espírito das maldades da rua”.
Em caso inédito, é o primeiro brasileiro a se aposentar como homem depois de ter cumprido todos os requisitos para a aposentadoria feminina.