Na última semana, grande parte da população, pelas mídias sociais e convencionais, assistiu indignada a conduta de um desembargador que ofendeu verbalmente um guarda municipal da cidade de Santos, quando o magistrado foi cientificado de que seria multado em face de ter recusado-se a colocar máscara protetiva contra a Covid-19, na via pública.
Em tese, neste caso, o desembargador pode ter cometido crime ou ato de improbidade, ao utilizar a função pública com abuso e por ofender servidor público no exercício de suas funções. Pergunta-se: quem irá apurar a conduta do magistrado e fará o seu julgamento? É sabido que, pela legislação em vigor, quem apura a conduta de um juiz, seja ele de qual instância for, é sempre um outro juiz, desde que de grau hierárquico superior. Quem aceita a denúncia do crime apurado pela justiça? A própria justiça. Ou seja: a justiça investiga, a justiça aceita a denúncia e a justiça processa e julga o seu par.
Na apuração de delitos, não é só o Judiciário que tem essa prerrogativa, mas também o Ministério Público. Quando um promotor de justiça comete um delito, o responsável pela apuração é outro promotor, no caso procuradores de justiça, e quem oferece a denúncia, ou não, é o próprio colega do Ministério Público. Quando um delegado de polícia, seja federal ou estadual, comete uma infração penal, quem os apura também são outros delegados, estaduais ou federais, respectivamente.
E por que ninguém, ou setores da mídia, questionaram quem iria investigar, aceitar a denúncia e processar e julgar a conduta do magistrado? Por que neste caso ninguém falou em corporativismo? Por que aqui ninguém menciona a teoria dos “freios e contrapesos”, como se cobra dos militares, em especial dos policiais militares?
Para o Poder Judiciário, para o Ministério Público, para a Polícia Federal e para a Polícia Civil o tal corporativismo não existe. Está evidente que é um preconceito e perseguição ideológica para com aqueles que estão o tempo todo atuando e doando a sua vida em defesa da sociedade.
Quem atua na área da Justiça ou policial sabe que o mais técnico é um profissional ser investigado por outros da mesma carreira, os quais conhecem as peculiaridades do cargo e da função e podem avaliar condutas com mais propriedade e justiça, sendo que essa apuração deve que ser controlada por um órgão externo e pela sociedade, como ocorre com a Polícia Militar que é controlada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
E é isso que deve ocorrer, como já ocorre, quando policiais militares cometem crimes no exercício da função, ou seja, devem ser, como nas outras carreiras, investigados pelas próprias Instituições Militares, bem como julgados pela Justiça Militar, sendo cediço que a Justiça Militar é mais técnica para processá-los e julgá-los, além do que os crimes militares possuem institutos processuais diversos, não sendo atingidos por vários benefícios legais, como ocorre com os crimes comuns.
E olha que os policiais militares só são investigados pelas Polícias Militares e julgados pela Justiça Militar quando atuam no exercício da função pública, diferentemente das outras carreiras, que são investigadas pelos pares mesmo em crimes cometidos fora de suas atribuições legais.
Tempos atrás, o Estadão, por meio do blog de Fausto Macedo, publicou matéria jornalística que trouxe a seguinte manchete – “Tribunal Militar condena ex-aluno do núcleo de oficiais por dois cigarros de maconha”. Nesse caso, o ex-militar foi condenado a um ano de detenção.
Ao contrário do que muitos pensam, tanto nas Forças Armadas quanto nas Polícias Militares, o arcabouço jurídico brasileiro, penal e administrativo, que traz o regime jurídico dos militares, é muito mais rigoroso do que o existente no mundo civil.
Para o direito penal militar brasileiro, por exemplo, o porte de drogas não é considerado um crime de menor potencial ofensivo, sendo aplicada diretamente uma pena privativa de liberdade e não uma mera advertência, como ocorre no direito penal comum.
Outra situação jurídica mais benéfica, a quem não é militar, é a de que, em crimes de menor potencial ofensivo, o autor poderá “transacionar com o Estado”, de tal sorte que esse acordo realizado sequer dará início a um processo criminal em desfavor daquele que cometeu o delito. Também, nos crimes de lesões corporais leves ou culposas, se a vítima não representar, o autor do fato ficará impune.
Esse mesmo autor, ainda, poderá ter o processo suspenso, na hipótese de ser caso de denúncia, se cumprir algumas condições previstas em lei, situação esta que não se aplica aos militares, porquanto aos delitos de natureza militar são inaplicáveis os institutos e benefícios da Lei 9.099/95.
Ademais, no direito penal militar também não vigora o princípio da bagatela, princípio este perfeitamente utilizado no direito penal comum, em especial nos delitos contra o patrimônio, em que o valor insignificante de um bem subtraído torna o fato atípico.
Na seara penal militar, ainda, deve-se observar que para os militares, federais e estaduais, existe a previsão no Código Penal Militar dos chamados “crimes propriamente militares”, dentre os quais deserção (afastamento por mais de 8 dias da atividade sem justificativa); insubordinação, que criminaliza a conduta daquele que descumpre ordem expressa de superior, delitos estes que, no mundo civil, não passariam de meras infrações trabalhistas.
Se não bastasse o aspecto penal, que impõe ao militar um regime jurídico criminal bem mais rigoroso do que o dos servidores civis, as carreiras militares possuem regulamentos administrativos muito mais exigentes do que as demais classes e categorias.
E quem aplica o direito penal militar? Certamente são as Justiças Militares, mais técnicas e profundas conhecedoras das atividades realizadas pelos militares federais e estaduais. Não são tribunais de exceção, mas sim justiças especiais, como a trabalhista e a eleitoral, preexistindo ao fato delituoso.
E também são mais justas, porquanto, ao julgarem de forma específica aqueles que têm atividades peculiares, atuam com maior imparcialidade e conhecimento de causa.
Ressalta-se, ainda, que toda essa tecnicidade, tanto da polícia judiciária militar para apurar os delitos militares, quanto da Justiça Militar para julgá-los, advém do conhecimento dos ramos do Direito Penal Militar e Processual Penal Militar adquiridos nos bancos acadêmicos militares, matérias que, infelizmente, não fazem sequer parte dos currículos da esmagadora maioria das Faculdades e Universidades de Ciências Jurídicas, o que acaba inviabilizando ou dificultando profissionais e operadores do Direito no trato com questões tão relevantes, desconhecendo as atribuições de polícia judiciária militar e as competências da Justiça Militar, fazendo que muitos expressem opiniões absurdas e desprovidas de embasamento constitucional e/ou legal.
Além disso, como dito anteriormente, a regra no Brasil é a de que, nos setores públicos, em especial aos aplicadores e operadores das leis e do direito, as apurações e julgamentos são feitos pelos próprios integrantes da carreira, visto que o legislador assim estabeleceu, para que as decisões fossem mais técnicas e levadas a efeito por pessoas conhecedoras das peculiaridades de suas carreiras.
Por derradeiro, destaca-se a Constituição Federal de 1988, considerada por todos como a mais democrática e cidadã, que previu expressamente as Justiças Especiais, dentre elas a Justiça Militar, sendo que o constituinte brasileiro as reconheceu como sendo essenciais dentro de um Estado Democrático de Direito.
Por isso, ser tratada por alguns, maldosos ou desavisados, como protecionista ou corporativista, é uma verdadeira “injustiça” para as Justiças Militares. Parece até um paradoxo tal antagonismo, mas a plena justiça se dá quando Instituições e seus integrantes são investigados e julgados por pessoas que conhecem da essência destas Instituições, das normas jurídicas que as regem e, principalmente, das peculiaridades que envolvem essas atividades, essenciais ao interesse público e à garantia da democracia, desde que controladas por um órgão externo e pela sociedade.